21 de setembro de 2011

As florzinhas de São Francisco Capítulo 26

Como São Francisco converteu três ladrões homicidas e eles ficaram frades, e sobre a nobilíssima visão que um deles teve, o qual foi um frade muito santo. 

Uma vez, São Francisco foi pelo deserto do Borgo a San Sepolcro e, passando por um castelo que se chama Monte Casale, veio a ele um jovem nobre e delicado, e lhe disse: “Pai, eu gostaria de ser um dos vossos frades, de muito boa vontade”. São Francisco respondeu: “Filho, tu és jovem, delicado e nobre; pode ser que não possas suportar a nossa pobreza e aspereza”. E ele disse: “Pai, vós não sois homens como eu? Então como vós as suportais, eu também poderei, com a graça de Cristo”. São Francisco gostou muito daquela resposta. Por isso, abençoando-o, recebeu-o imediatamente na Ordem e lhe deu o nome de Frei Ângelo. E esse jovem comportou-se tão graciosamente que, pouco tempo depois, São Francisco o fez guardião do lugar chamado Monte Casale. 
Naquele tempo, andavam por aquela região três ladrões famosos, que faziam muito mal por ali. Um dia eles foram ao dito lugar dos frades e pediram ao referido Frei Ângelo, guardião, que lhes desse de comer. E o guardião respondeu-lhes deste modo, repreendendo-os asperamente: “Vós, ladrões, cruéis e homicidas, não vos envergonhais de roubar as fadigas dos outros mas até, presunçosos e descarados, quereis devorar as esmolas que são mandadas para os servos de Deus, que não sois dignos nem que a terra vos sustenha, pois não tendes nenhuma reverência nem aos homens nem a Deus que vos criou. Por isso, ide cuidar de vossa vida, e não me apareçais mais aqui”. Por isso eles, perturbados, partiram com muita raiva. 
E eis que São Francisco voltou de fora com a bolsa do pão e uma garrafinha de vinho que ele e o companheiro tinham mendigado. Como o guardião lhe contou como tinha despachado aqueles homens, São Francisco repreendeu-o fortemente, dizendo que se comportara com muita crueldade, “pois eles são melhor reconduzidos a Deus com doçura do que com cruéis repreensões. Por isso nosso mestre, Jesus Cristo, cujo evangelho prometemos observar, diz que não são os sadios que precisam de médico mas os doentes, e que não tinha vindo para chamar os justos mas os pecadores para fazer penitência. E por isso muitas vezes comia com eles. E como agiste contra a caridade e contra o evangelho de Cristo, eu te mando pela santa obediência que pegues imediatamente esta bolsa do pão que eu mendiguei e esta garrafinha de vinho, e os busque solicitamente pelas montanhas e vales até os encontrares, e lhes apresenta todo este pão e todo este vinho da minha parte. Ajoelha-te depois diante deles lhes diz humildemente a culpa pela tua crueldade, e depois lhes pede, da minha parte, que não façam mais mal, mas temam a Deus e não ofendam o próximo; e se eles fizerem isso, eu prometo prove-los em suas necessidades e dar-lhes continuamente de comer e de beber. E quanto lhes tiveres dito isso, volta para cá humildemente”. Enquanto o dito guardião foi cumprir a ordem de São Francisco, e se pôs em oração e rogava a Deus para que amolecesse os corações daqueles ladrões e os convertesse para a penitência. 
O obediente guardião chegou a eles e lhes apresentou o pão e o vinho, fez e disse o que São Francisco lhe tinha imposto. E, como agradou a Deus, quando aqueles ladrões comeram a esmola de São Francisco, começaram a dizer ao mesmo tempo: “Ai de nós, míseros desventurados! E como merecemos as duras penas do inferno, nós que vamos não só roubando o próximo, mas também batendo e ferindo, e até matando. E apesar de tantos males e de coisas tão celeradas coisas, como nós fazemos, nós não temos nenhum remorso de consciência nem temor de Deus. E eis que este frade santo vem a nós, por causa de umas poucas palavras que nos disse justamente por nossa maldade, disse-nos humildemente a sua culpa e além disso nos trouxe o pão, o vinho e uma promessa tão liberal do santo pai. Na verdade, estes são os frades santos de Deus, que merecem de Deus o paraíso, e nós somos filhos da perdição eterna, que merecemos as penas do inferno, e crescemos todos os dias na nossa perdição, e não sabemos se, dos pecados que fizemos até aqui, vamos poder voltar para a misericórdia de Deus”. 
Dizendo um deles essas e semelhantes palavras, os outros dois disseram: “É certo que dizes a verdade; mas que é que nós vamos fazer?”. O outro disse: “Vamos a São Francisco, e se ele nos der esperança de que podemos voltar para a misericórdia de Deus por nossos pecados, faremos o que ele nos mandar e poderemos libertar nossas almas das penas do inferno”. 
Esse conselho agradou aos outros, e assim os três foram depressa a São Francisco e lhe disseram: “Pai, nós, pelos muitos pecados celerados que fizemos, não cremos que vamos poder voltar para a misericórdia de Deus; mas se tu tiveres alguma esperança de que Deus vai nos receber na misericórdia, eis que estamos prontos para fazer o que tu disseres e para fazer penitência contigo”. 
Então São Francisco, recebendo-os com bondade, confortou-os com muitos exemplos e, tornando-os certos da misericórdia de Deus prometeu-lhes com certeza que ia alcança-la de Deus e mostrando-lhes que a misericórdia de Deus era infinita: “mesmo que nós tivéssemos pecados infinitos, a misericórdia de Deus ainda é maior que os nossos pecados, segundo o Evangelho. E o apóstolo São Paulo disse: Cristo bendito veio a este mundo para resgatar os pecadores. Por essas palavras e semelhantes ensinamentos, os ditos três ladrões renunciaram ao demônio e às suas obras, e São Francisco recebeu-os na Ordem, e começaram a fazer grande penitência. 
Dois deles viveram pouco depois da sua conversão e foram para o paraíso. Mas o terceiro sobreviveu, repensou nos seus pecados e se entregou a fazer tanta penitência que, por quinze anos consecutivos, exceto nas quaresmas comuns, que fazia com os outros frades, no resto do tempo sempre jejuava a pão e água três dias por semana, andava sempre descalço e com uma só túnica, e nunca dormia depois de matinas. 
Nesse tempo, São Francisco passou desta mísera vida. E como ele continuou por muitos anos tal penitência, eis que uma noite, depois de matinas, teve tanta tentação de sono que de modo algum podia resistir ao sono e velar como costumava. Finalmente, como não podia resistir ao sono nem orar, foi para a cama dormir. E, de repente, quando repousou a cabeça, foi arrebatado e levado em espírito para cima de um monte altíssimo, no qual havia um abismo profundíssimo e, dos dois lados, havia penhascos lascados e aguçados, e ainda escolhos desiguais que se projetavam para fora dos penhascos. Por isso, dava medo olhar para baixo. E o Anjo que estava levando o frade levantou-o e o jogou para baixo no abismo. Ele, ricocheteando e batendo de escolho em escolho e de penhasco em penhasco, no fim chegou ao fundo do abismo, todo desmembrado e esmigalhado, como lhe parecia. 
Estendido tão mal lá no chão, dizia-lhe o que o levava: “Levanta-te que ainda tens que fazer uma longa viagem”. O frade respondeu: “Tu me pareces um homem muito indiscreto e cruel, pois estás vendo que eu estou morrendo pela queda, que me despedaçou desse jeito, e me dizes: Levanta-te!”. 
O anjo aproximou-se dele, consertou todos os seus membros e o curou. Depois mostrou-lhe uma grande planície de pedras aguçadas e cortantes, de espinhos e de abrolhos, e lhe dizia que tinha que correr por toda essa planície passando de pés descalços até chegar ao fim. Lá ele via uma fornalha ardente em que tinha que entrar. 
Quando o frade passou todo o plano com grande angústia e pena, o Anjo lhe disse: “Entra nessa fornalha, pois assim convém que faças”. Ele respondeu: “Ai, que guia cruel tu és, que me vês quase morto por essa angustiosa planície e agora, para descansar, dizes que eu entre nessa fornalha ardente”. E olhando ele viu ao redor da fornalha muitos demônios com forcados de ferro na mão, com os quais eles o jogaram de repente dentro da fornalha, porque estava demorando para entrar. Quando estava dentro da fornalha, olhou e viu um que tinha sido seu compadre, que estava todo em chamas. E lhe perguntou: “Ó compadre desventurado, como vieste parar aqui?”. O outro respondeu: “Vai um pouco mais para frente vais encontrar minha mulher, tua comadre, que te contará o motivo da nossa condenação”. O frade foi mais para a frente e eis que lhe apareceu a comadre, pegando fogo, fechada numa medida de trigo toda de fogo; e lhe perguntou: Ó comadre desventurada e mísera, porque vieste a tão cruel tormento?”. Ela respondeu: “Porque no tempo da grande fome, que São Francisco predisse antes, meu marido e eu falsificamos o trigo e a aveia que vendíamos na medida, e por isso estou ardendo apertada nesta medida”. 
Ditas essas palavras, o Anjo que levava o frade empurrou-o para fora da fornalha e depois lhe disse: “Prepara-te para fazer uma viagem horrível, pela qual tens que passar”. Ele se lamentava dizendo: “Ó guia duríssimo, que não me tens nenhuma compaixão. Estás vendo que eu estou quase todo queimado nesta fornalha e ainda me queres levar numa viagem perigosa e horrível?”. 
Então o Anjo tocou-o e o fez são e forte. Depois, levou-o a uma ponte, que não se podia passar sem grande perigo, pois era muito fina, estreita e muito escorregadia, sem parapeitos do lado, e embaixo passava um rio terrível, cheio de serpentes, dragões e escorpiões, e soltava um enorme fedor. E o Anjo lhe disse: “Passa por esta ponte, porque te convém passar por tudo”. Ele respondeu: “E como vou poder passar sem cair nesse rio perigoso?”. O Anjo disse: “Vem atrás de mim e põe o teu pé onde me vires pôr o meu, e assim vais passar bem”. O frade passou atrás do anjo, como lhe tinha sido ensinado, tanto que chegou ao meio da ponte. Quando estava no meio, o anjo foi embora voando, indo parar num monte altíssimo, bem para lá da ponte. Ele considerou bem o lugar para onde o Anjo tinha voado, mas como ficou sem guia e olhou para baixo, via que aqueles animais tão terríveis estavam com a cabeça fora da água e com as bocas abertas, prontos para devora-lo se caísse. Tremia tanto que não sabia de modo algum o que tinha que fazer ou que tinha que dizer, pois não podia voltar atrás nem ir para frente. 
Vendo-se no meio de toda essa tribulação, e que não tinha outro refúgio a não ser Deus, ajoelhou-se, abraçou a ponte e, de todo coração e com lágrimas, recomendou-se a Deus, que por sua santíssima misericórdia devia socorre-lo. Feita a oração, pareceu-lhe que começava a criar asas. Por isso esperou com muita alegria que elas crescessem para poder voar para lá da ponte, para onde tinha voado o Anjo. Mas, depois de algum tempo, pela grande vontade que tinha de passar a ponte, começou a voar. Mas como as asas não tinham crescido bastante, caiu em cima da ponte e lhe caíram as penas. Então e recomeçou a abraçar a ponte e a recomendar-se a Deus, como antes. Feita a oração, também agora pareceu-lhe que criava asas. Mas, como antes, não esperou que crescessem perfeitamente e, por isso, pondo-se a voar antes da hora, caiu de novo em cima da ponte, e as penas caíram. Então, vendo que caía pela pressa que tinha de voar antes da hora, começou a dizer consigo mesmo: “É certo que se eu criar asas uma terceira vez vou esperar que elas fiquem tão grandes que poderei voar sem tornar a cair”. E estando a pensar nisso, viu que estava criando asas uma terceira vez. Esperou muito tempo, até que elas ficaram bem grandes. E lhe pareceu que, com isso de criar asas a primeira, a segunda e a terceira vez, tinha esperado bem cento e cinqüenta anos ou mais. No fim, levantou-se para voar essa terceira vez, com todo o seu esforço e voou para o lugar aonde o Anjo tinha voado. 
Batendo na porta do palácio em que ele estava, o porteiro lhe perguntou: “Quem és tu que vieste aqui?”. Respondeu: “Eu sou frade menor”. Disse o porteiro: “Espera que eu vou trazer São Francisco para ver se te conhece”. Enquanto ele foi procurar São Francisco, o frade começou a olhar as paredes maravilhosas do palácio. E eis que essas paredes eram tão brilhantes e de tanta claridade, que via claramente os coros dos santos e o que se fazia lá dentro. Estava a olhar estupefato quando chegaram São Francisco com Frei Bernardo e Frei Egídio, e atrás de São Francisco uma multidão tão grande de santos e de santas que tinham seguido a sua vida, que quase parecia inumerável. Quando São Francisco chegou, disse ao porteiro: “Deixa-o entrar, pois ele é um dos meus frades”. 
Assim que entrou, ele sentiu tanta consolação e tanta doçura que se esqueceu de todas as tribulações pelas quais tinha passado, como se não tivessem existido. Então São Francisco levou-o para dentro e lhe mostrou muitas coisas maravilhosas. Depois lhe disse: “Filho, convém que tu voltes para o mundo e lá estarás sete dias, nos quais tu te prepararás diligentemente e com grande devoção porque, depois dos sete dias, eu irei te buscar, e então tu virás comigo para este lugar de bem-aventurados”. 
São Francisco estava coberto com um manto maravilhoso, adornado de estrelas belíssimas, e as suas cinco chagas eram como estrelas belíssimas e de tanto esplendor que iluminavam todo o palácio com seus raios. E Frei Bernardo tinha na cabeça uma coroa de estrelas belíssimas, e Frei Egídio estava adornado por uma luz maravilhosa. E conheceu muitos outros santos frades entre eles, que nunca tinha visto no mundo. Então, dispensado por São Francisco, voltou ao mundo, ainda que de má vontade. 
Quando despertou e voltou a si, estremunhando, os frades estavam tocando para Prima, de modo que não tinha estado em tudo aquilo senão de Matinas a Prima, embora lhe tivesse parecido que tinham passado muitos anos. Contou em ordem ao seu guardião essa visão. Depois dos sete dias, começou a ter febre.No oitavo dia, São Francisco veio busca-lo segundo a promessa, com uma grandíssima multidão de gloriosos santos, e levou sua alma para o reino dos bem-aventurados, para a vida eterna. 
Para louvor de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco. 

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